Um dos aspectos centrais da educação na primeira infância, a relação com
o outro pode ter diversas abordagens na educação infantil e explorá-la
depende da aguçada percepção do professor
Creches e pré-escolas são, na maioria dos casos, o primeiro contato
extrafamiliar da criança com o mundo e, por isso, apresentam
oportunidades ímpares para o seu desenvolvimento em sociedade. A relação
com novos adultos, o contato com pessoas de diferentes origens e
interesses, as vivências em ambientes coletivos representam, por si sós,
um laboratório de experiências e aprendizagem sobre os aspectos
sociais do mundo. Porém, quais os melhores caminhos para aproveitar esse
potencial e construir práticas pedagógicas adequadas ao conhecimento do
outro e do mundo social? Especialistas garantem que mesmo as escolas
com abordagem mais didática e metodológica do conhecimento devem
valer-se de atividades lúdicas e integradas, que provoquem a curiosidade
da criança.
Beatriz Abuchaim, pesquisadora da Fundação Carlos Chagas (FCC),
lembra que a criança apresenta uma curiosidade inata pelo ambiente que a
circunda, incluindo os objetos, as pessoas e os elementos da natureza.
Por isso, o professor deve observar seu comportamento, interesses e
manifestações para, depois, propor experiências que contemplem a
compreensão tanto de aspectos da natureza quanto da sociedade. “É
fundamental que, nesse processo, as curiosidades e hipóteses das
crianças sejam valorizadas, para que elas aprendam a desenvolver uma
postura científica frente aos diversos objetos de conhecimento”, destaca
Beatriz.
Essa postura científica, nessa fase do desenvolvimento, deve ser
traduzida por um questionamento, por parte das crianças, de suas
próprias ideias e concepções sobre o mundo, e também pelo desejo de
buscar novas informações. O professor é peça fundamental para estimular
essa postura, por meio de observação permanente e escuta atenta. Uma
simples atitude dos alunos pode transformar-se em um projeto pedagógico
mais amplo e que abranja diversos aspectos de aprendizagem relativos ao
mundo social.
Como exemplo, Beatriz conta que, durante uma pesquisa que realizava
em sala de aula com crianças de 4 anos, um menino comentou que morava na
favela. “A maioria dos alunos daquele grupo vivia em bairros mais
urbanizados e alguns riram do colega. Em vez de repreender os que riram,
a professora resolveu trabalhar o que eles entendiam por favela”,
conta. Assim, passou a registrar as ideias das crianças sobre o que é a
favela. Aquelas que moravam em bairros mais urbanizados deram definições
negativas, como: “onde dá tiro”, “tem bandido” e “matam crianças”.
Depois, foi a vez dos que moravam na favela falar sobre o que achavam de
seu mundo: “amigos”; “pessoas boas, trabalhadoras”; e “pessoas
normais, que não são traficantes”.
À medida que novas ideias eram lançadas, as crianças ficavam cada vez
mais sérias e compenetradas. Mais tarde, em conversa particular, a
professora contou a Beatriz que pretendia continuar a trabalhar o
assunto em sala de aula, elaborando um projeto pedagógico que abordasse a
questão da violência e das diferenças sociais no Brasil.
“Assim, a docente partiu de uma manifestação das crianças do grupo,
no caso o preconceito expresso em forma de risada, para tratar de
assuntos mais amplos e profundos, que envolvem questões de cidadania e
de convívio em sociedade”, destaca. A pesquisadora da FCC também lembra
que, conforme a proposta das Diretrizes Curriculares Nacionais, a
professora poderia planejar uma série de atividades que contemplassem o
tema, explorando-o por meio de experiências em diferentes áreas de
conhecimento.
Além das questões levantadas em função da curiosidade das crianças,
Monica Fantin, professora na Faculdade de Educação da Universidade
Federal de Santa Catarina (UFSC), acredita que as práticas pedagógicas
voltadas ao conhecimento do mundo físico e social devem ser pautadas
pela brincadeira e pela exploração da capacidade lúdica dos menores.
Como sugestão, os docentes podem propor brincadeiras de detetive para
que os alunos encontrem animais e insetos na escola e, depois, partir
para atividades mais sistematizadas, como pedir pesquisas de imagens na
internet.
“As crianças aprendem no contexto. Por isso, quanto mais brincarem e
imaginarem, melhores condições terão para uma aprendizagem
sistematizada”, garante. Monica lembra que a abordagem das questões
relativas ao mundo social nas escolas tem enfrentado questões novas,
entre elas a diversidade das famílias, que podem contar, por exemplo,
com uniões homoafetivas, assunto cada vez mais presente no cotidiano
infantil e que, para ela, deve ser trazido para o contexto escolar.
Olhar para a diversidade
No caso das escolas privadas, em que o perfil dos alunos tende a ser
mais homogêneo, ela defende que os professores invistam ainda mais em
atividades que ensinem a lidar com diversidade. “Os docentes devem
propiciar o convívio com o diferente por meio de brincadeiras, filmes e
músicas que mostrem a realidade de outros países ou famílias”,
aconselha. Apesar de reconhecer que as políticas públicas dos últimos
dez anos tenham priorizado o lúdico e o imaginário na educação infantil,
a educadora lembra que muitas escolas se baseiam em apostilas nessa
etapa do ensino. “No final das contas, é o professor que dá a tônica na
sala de aula”, aponta.
Ao lado da exploração da curiosidade e da capacidade lúdica dos
menores, Maria Thereza Marcilio, gestora institucional da ONG Avante,
defende que as atividades relativas ao conhecimento social devem se
apoiar em múltiplas linguagens – entre elas, atividades motoras,
intelectuais, artísticas e orais – a exemplo do que defendia o pedagogo
italiano Loris Malaguzzi, que enxergava as crianças como partícipes do
processo de construção do conhecimento, da identidade e da cultura
escolares.
“Alunos de até 6 anos se expressam de forma mais rica e polifônica do
que os adultos, e os docentes podem propor atividades nessas diferentes
linguagens para enriquecer o processo pedagógico”, diz. De acordo com a
gestora, é preciso centrar o currículo escolar nas questões que a
própria criança coloca, que muitas vezes são profundas e se relacionam a
assuntos como nascimentos, mortes, polêmicas familiares e raciais.
Maria Thereza concorda com Monica, da UFSC, ao criticar as escolas de
educação infantil que estabelecem horários determinados para o brincar.
“O modo privilegiado de a criança se relacionar com o mundo é o
brincar. Assim, é por meio do lúdico que a escola deve trabalhar todas
as suas atividades”, defende. Porém, apesar da crítica, reconhece que as
grandes descobertas teóricas em relação à primeira infância são
recentes e as instituições ainda estão se apropriando dessas teorias.
Conceitos na prática
Atividades interdisciplinares e incentivos à curiosidade são dois
eixos comuns em práticas pedagógicas de duas escolas particulares de São
Paulo. Eduardo Zayat Chammas, coordenador de ciências humanas no
Colégio Lourenço Castanho, explica que os conceitos de história,
geografia e filosofia são trabalhados por meio de atividades integradas.
Um projeto realizado em 2014 e no qual crianças de 5 anos tinham de
responder de onde vêm determinados produtos mostra como é o trabalho da
escola. “Os alunos investigaram o processo de produção e as origens
históricas de elementos como o chocolate e o papel”, conta. As crianças
também participaram de uma atividade para produzir papiro com a planta,
colocando em prática informações levantadas previamente.
Também preocupada com a interdisciplinaridade, Isabella Nigro,
professora de educação infantil do Colégio Marista Arquidiocesano,
detalha que o trabalho que equivale às disciplinas do leque das ciências
sociais aos menores da instituição se dá por meio de atividades
integradas que permitem preservar o conhecimento histórico e ensinam
como lidar com a diversidade cultural e desenvolver a identidade. Um
exemplo foi o circo organizado para as crianças de 2 anos. Sua
finalidade era incentivar a evolução motora de forma lúdica e trazer
informações sobre brincadeiras tradicionais, como trapézio e
malabarismo, que muitas não conheciam. Assim, artistas circenses foram
levados à escola e os espetáculos registrados em fotografias para
permitir que as crianças e os pais revivessem a experiência.
Fonte - Por: Christina Stephano de QueirozRevista Educação